Meu nome é Carmem. Eu tenho 51 anos, gosto de costurar roupas de boneca, adoro orquídeas, tenho medo de fumaça e não gosto de pessoas vivas. Não sei conversar, não vou a festas e vivo longe da minha família. Eu nasci em Sertõezinhos, um distrito em Goiás. Papai era doente, tinha uns tremores muito esquisitos, espumava pela boca. Mamãe, coitada, bebia, bebia e dormia. Ah, mas eu tive muitas bonecas. Bem feias, de chumaços de algodão que eu encontrava e botava em sacos de feltro – mas as melhores amigas do mundo.
Mudei-me jovem, não tive mais notícias de lá. Que Deus os tenha protegido pelo tempo justo, amém. Vim parar em Pirenópolis. E encontrei serviço numa funerária recém aberta. Eu banho, visto e maquio os defuntos. Meus bonecos de adulto. E são muito bons amigos também. Eles escutam a gente bem e alguns guardaram no rosto umas expressões tão fortes que parecem tar respondendo a alguma coisa que a gente diz. Eles não fazem maldade com ninguém, eles não fazem perguntas demais. E eu sou do tipo de pessoa que não saberia responder. Esses dias arrumei um bebezinho... devia ter 2 anos, não mais. Mas que coisa mais linda, meu Senhor. Eu aninhei, ele passou o dia nos meus braços. E como eu cantei pra ele... cantei as músicas que eu me lembrava de ter ouvido a minha mãezinha cantar pro pequenino lá de casa, Geraldo. Eu beijava tanto esse bebê que parecia que tavam roubando um filho meu quando puseram ele no caixãozinho. Quando eu cheguei em casa, costurei um macacãozinho lindo pra ele antes de pegar no sono. E o outro dia foi um dia novo e só.
Meu nome é Geraldo, eu fui criado em Sertõezinhos e enterrei a mãe já bem velhinha e com algum problema que o médico disse ser no fígado. Nunca entendi bem, mas desde que papai se foi, quando eu era ainda miudinho, mamãe era sempre cuidada por alguém. Primeiro Tia Tonha, depois o vigário que vivia visitando a gente e me levou pra estudar na paróquia. Eu estudei, estudei, aprendi a ler e tudo. E tenho muito amor com a Bíblia. Depois da morte da mãezinha vim parar em Abadiânia. E aqui eu trabalho de coveiro, mas tenho um segredo meu pra guardar. As pessoas não parecem levar a sério o que dizia nosso Deus... os mortos ressuscitam... no sétimo dia, mas ninguém mais se lembra de resgatar quem tá morto. Eu sou coveiro e tenho meu caderninho... e pra cada defunto que enterro eu guardo nome, lápide e data. E sete dias depois lá estou eu... e dá um trabalho enorme cavar tanta terra, desenterrar tanto pano e dar uma chance pra pessoa voltar a respirar. Pelo que vi até hoje a tal da ressurreição não é pra todo mundo. Acho que só as pessoas santas é que devem ter essa graça. O vigário de certo é um desses, que ressucitou ao sétimo dia, mas que, COITADO: não tinha quem fosse lhe salvar. Eu morro de medo de gente viva ficar lá, enterrada. Sonho com isso as vezes... mas faço a minha parte. Eu sei que amanhã é um novo dia e só.